A essa altura do campeonato você já deve ter assistido a Matrix Resurrection.
E sabe que o filme é amplamente indicado para pessoas que sofrem de insônia.
Porque, além de chato, o filme é paradaço e nada lembra aquele filme revolucionário de 1999, recheado de teorias e filosofias, com muita coisa escondida que, apenas com o passar do tempo, essas referências foram se despindo.
Isso sem contar com a ação revolucionária e muito kung-fu - como Keanu Reeves deixou bem claro nas primeiras entrevistas: era um filme que flertava com os quadrinhos de Frank Miller.
Por exemplo, quando surgiu, o filme era visto como uma metáfora sobre fé, esperança e profecia. Morpheus seria uma espécie de João Batista; Trinity, Maria Madalena; e Neo, o próprio Cristo. Há ainda Cypher como Judas Escariotes.
Mas também cabe budismo e outras ideias acerca de espiritualidade e elevação.
As duas sequências de Matrix arrefeceram um pouco esse messianismo todo de Neo e o apelo meio que se perdeu - afinal, quando o original de 1999 termina, você está louco[a] para ver a sequência porque tem certeza de que Neo está indo lá peitar a Matrix. O que não acontece.
Inclusive Matrix Reloaded e Revolutions parecem dissonantes do longa original.
Com um final anticlímax, Neo se sacrifica para manter a paz entre os humanos e as máquinas. Trinity também perde a vida no processo e a impressão que dá é que nunca mais ouviríamos falar deles.
Todavia, houve um game - considerado canônico - que conta a história de um novo Neo surgindo; ou melhor, uma nova Neo. E as fichas apontavam para a personagem de Jessica Henwick, a Bugs.
Mas não.
Neo é e continua sendo o único mesmo [bem, mais ou menos], e Matrix 4 chega contando a sua história novamente.
Neo e Trinity são reconstruídos - ou reconcebidos - pela Matrix graças a um capricho do Analista - que mais parece uma versão do Arquiteto.
Porque segundo o mesmo, numa explicação que lembra bastante os seriados dos anos 50, 60 onde os vilões contam seus planos para os herois presos/amarrados apenas para vê-los frustrados quando os mesmos protagonistas conseguem se livrar/desamarrar. Então, o Analista conta seu plano e explica que as versões que melhor deram certo da Matrix tinham a ver com Neo e Trinity sendo explorados por ela.
Em Resurrection, Neo volta a ser Thomas Anderson e agora é um criador/programador de games, cujo maior sucesso foi--- a trilogia Matrix.
Agora, os produtores querem um novo capítulo dessa história, querendo Thomas ou não - esse diálogo mostra exatamente o tapa que Lana Wachowski dá na cara da Warner [lê-se Joel Silver] por querer fazer um quarto filme, que seria produzido por Silver e mostraria um Morpheus jovem, papel que cairia nas mãos de Michael B. Jordan. Para que o seu bezerro de ouro não caísse em "mãos erradas", Lana volta à direção e traz Reeves e Carrie-Ane Moss a tiracolo.
Então, há um grande momento do filme em que os personagens falam abertamente sobre a trilogia original e qual o impacto da obra no mainstream. Anderson passa quase o tempo todo monossilábico, tentando entender o que está acontecendo - confesso que, em determinado momento, ele me passou a impressão de estar com Alzheimer, tamanho o seu descolamento da "realidade".
Claro, isso muda quando ele visualiza Tiffany, anteriormente chamada de Trinity, casada e mãe de várias crianças.
Eles sempre se encontram no mesmo café e com o tempo a conversa se torna inevitável.
Tiffany conta que conhece o trabalho de Anderson e que a personagem Trinity a faz lembrar de si mesma.
Anderson é paciente de um analista que passa o tempo tentando dissuadi-lo da acreditar em sua vida anterior, fazendo uso de pílulas azuis aos montes.
Claro que ele esbarrará com Morpheus, ou alguém muito parecido; seguirá um coelho até à toca dando início ao jogo.
Esse coelho chama-se Bugs e é a melhor coisa do filme: interpretada por Jessica Henwick, Bugs se diz devota de Neo desde que o viu saltando de um prédio e alçando voo.
Ao tomar a pílula vermelha, Neo descobre que se passaram 60 anos desde Matrix Revolutions e agora a humanidade vive numa cidade chamada Io, em parceria com algumas máquinas. Io é governada pela anteriormente conhecida como Niobe, agora chamada de General.
A General não se sentemuito bem com a presença de Neo ali, pois dá a sensação de que ele é de uma época que ela gostaria de esquecer.
Quando Neo descobre que Trinity também está viva, trata de tentar libertá-la, mesmo que isso custe a missão.
A General é contra, e eles descobrem que é Trinity quem está alimentando essa nova versão da Matrix; por isso, para libertá-la é preciso que alguém tome o seu lugar. Além disso, há outros interessados em manter as coisas como estão: um deles é o Analista; o outro, uma nova versão do Agente Smith que até então atuava como sócio de Thomas Anderson na produtora.
Eles conseguem libertar Trinity, mas precisam empreender uma fuga que mais parece um episódio bem ruim de qualquer seriado com zumbis. Tudo é escuro, tudo é feio e mal feito.
A única ideia fantástica é relacioada aos bots.
E Neo? Ele passa o tempo fazendo uso de telecinese e mais parece um aposentado, na garupa da moto conduzida por Trinity.
Ao final eles descobrem que ela pode voar; além de fazer outras coisas.
Quando chegamos a essa cena em específico, onde é Trinity quem salva Neo, me veio à mente a Teela dessa nova versão de Mestres do Universo, produzida pelo picareta, Kevin Smith. E quando vão desconectá-la, eu tinha a certeza de que os papeis haviam sido invertidos e Neo seria agora a Trinity e Trnity, o Neo.
Mas, não. Apenas mudou-se o status de cada um.
Aliás, nesse novo Matrix, todas as posições de poder e protagonismo são de mulheres; aos homens sobraram a coadjuvância e a vilania. E Neo? Ele ficou do lado para Trinity poder salvar o dia.
E, claro, ao contrário de Mestres do Universo, isso não é um problema para Matrix, uma vez que esse filme é basicamente um reboot. Mas há muita referência ao novo formato de entretenimento, onde o homem se tornou exclusivamente uma ameaça à humanidade.
Lana Wachowski subverte as ideias, com muitas metáforas sobre identidade de gênero, sobre como você se vê e a vida que leva. Se em 1999, a ideia era mais uma questão espiritual, hoje é sexual mesmo. Talvez por isso Matrix Resurrection seja tão brochante.
Falta pujança, testosterona, e nem mesmo todas essas pílulas azuis poderiam resolver.
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