Em 2015, a Netflix fez história ao firmar uma parceria – que parecia inabalável – com a Marvel para produzir séries de seus super e anti—herois. Começando com Demolidor – que havia ganho um filme fraco, estrelado por Ben Affleck, uma década antes – e seguido por Jessica Jones, Punho de Ferro e Luke Cage, com a posterior adesão de Justiceiro, já no final da festa.
Desnecessário dizer que Demolidor foi a série mais vista da plataforma no ato de sua estréia – temporada de treze episódios – e a repercussão foi muito positiva!
Os problemas começaram a aparecer quando a Disney, dona da Marvel, decidiu entrar nesse ramo de streaming. Assim, todos sabiam que seria uma questão de tempo para que a casa do Mickey exigisse uma portabilidade dos títulos que a Netflix mantinha com a casa das idéias. Portabilidade, no caso de Demolidor e Jessica Jones, teria sido até uma solução acertada. No entanto, como sabemos, a Disney simplesmente disse “dê-me aqui os meus personagens” e deixou a Netflix falando sozinha.
Para piorar, a Disney comprou a Fox, que por sua vez tinha uma plataforma de streaming, chamada Hulu e, com isso, o distanciamento com a Netflix só aumentou.
Sendo assim, três temporadas de Demolidor e Jessica Jones, duas de Punho de Ferro, Luke Cage e Justiceiro e uma de Defensores, que unia os vigilantes urbanos, exceto Justiceiro, depois, e os direitos dos personagens já até voltaram para a Disney, com rumores inclusive da participação de Charlie Cox, astro de Demolidor, como Matt Murdock no novo filme do Homem-Aranha aparecem e desaparecem diariamente.
Nesse meio tempo, a maior concorrente da Netflix, Amazon tratou de arrumar uma antologia com seres superpoderosos vestindo uniformes colantes, para chamar de sua: The Boys. E, como se houvesse qualquer surpresa, tornou-se a série mais vista da plataforma. Claro que, aparentemente, esses números são divulgados pelas próprias plataformas, que não dizem quais critérios utilizam para chegar a esses números. Por exemplo: os números são contados pela visualização de episódios completos, apenas iniciados ou temporadas inteiras?
Sim, Netflix já tinha uma saga super-heroica: Academia Umbrella. E, embora a criação de Gerard Way e do brasileiro Gabriel Bá, tenha o seu fandom, ainda assim sequer risca a lataria de um projeto do porte de Demolidor, ou The Boys.
Então, surge uma novidade no horizonte: Netflix compra os direitos de produção de todo o Millarworld, o universo quadrinhístico de Mark Millar, ex-roteirista de Marvel e DC – que escreveu a elogiada Guerra Civil – que decidiu partir para o empreendedorismo e criou o próprio selo, cujos personagens se tornaram sucessos, inclusive com adaptações para o cinema. Estou falando de O Procurado, a saga de Wesley Gibson e o legado que seu pai lhe deixou como o maior assassino do planeta. Além deste, Millar produziu Nemesis – uma espécie de Batman do lado dos bandidos; Starlight – mistura de Flash Gordon com Supremo, personagem de Rob Liefeld; Chrononautas –De Volta para o Futuro encontra Viagem Insólita; entre tantos outros.
Com a aquisição de Millarworld, a plataforma abriu um leque infindável de adaptações e idéias fantásticas que poderiam ser traduzidas em filmes, séries, animações e muito mais.
E a primeira investida deveria ser certeira: já que é para tomar da concorrência o posto de casa das séries fodas, então que se começasse enfiando o pé na porta! E nesse sentido, a decisão pareceu a mais acertada: Legado de Júpiter tinha todos os predicados para fazer os fãs se esquecerem de The Boys.
Uma saga que começa no início do século passado e desemboca nos dias atuais, com conflitos de gerações, famílias disfuncionais, traições e batalhas de tirar o fôlego.
Legado de Júpiter conta a história de dois irmãos, Sheldon e Walter, filhos do empresário do aço no final dos anos 1920, que toma a decisão de se jogar de um prédio quando a Bolsa de Nova York quebra.
Enquanto Sheldon bancava o James Cagney com os funcionários e ostentava belos ternos adornados com a bela noiva, Jane, o irmão mais velho, Walter era o taciturno braço-direito do pai, controlando tudo ao redor e levando a empresa com mão de ferro. Walter sabia o que estava fazendo e justamente seu planejamento pedia uma pausa de cinco meses nos desenvolvimentos da empresa, pois sabia que eles estavam no limiar da bancarrota. Vencido pelo irmão bon vivant e pai enrolado, ele viu a empresa ruir, o pai se suicidar e seu nome ser exposto nas manchetes de jornais.
Mais uma vez, Sheldon banca o James Cagney da época e vai peitar o repórter que escreveu a matéria sobre a ruína de sua família: ele descobre que foi uma repórter, Grace, que tempos depois viria a ser sua esposa.
Sheldon começa a ter alucinações com o pai e conta com a ajuda do melhor-amigo, George, para passar por momentos deveras difíceis. George, por sua vez, também viveu sua cota de tristeza, com a perda dos pais e da fortuna – naquela época, não foram poucos os que perderam tudo! – e se mantinha em pé com um disfarçado senso de humor.
Convencido por Sheldon, George ajuda o amigo a contratar Grace – que havia sido demitida do jornal; Fit – ex-funcionário da empresa de aço; e Walter a viajarem até ao Marrocos em busca de uma ilha misteriosa que poderia ajudar a Sheldon a retomar a lucidez. Ainda faltava uma sexta pessoa, de acordo com os devaneios de Sheldon, para que a viagem fizesse sentido. Em meio a uma tempestade, o navio em que viajam encontra um náufrago que, trazido a bordo, é reconhecido por Sheldon como a peça que faltava. Juntos, os seis chegam à ilha.
Corta para os dias atuais: Sheldon é o maior super-heroi de todos, o mais poderoso, conhecido como Utópico – algo como o Superman. Grace é Lady Liberdade, uma Supermulher ou mesmo a Mulher-Maravilha . Walter é Onda Cerebral, parecido com Ájax, o Caçador de Marte. Fitz é Flare, uma versão distante de Lanterna Verde.
Sheldon não se entende com os filhos, Brandon e Chloe: ele, um pobre-coitado que espera a aprovação do pai; ela, a rebelde que foi viver a vida, tornou-se top model, mas é uma imã de problemas.
Walter também tem filhos: Reiko, uma espécie de telepata-ninja. E Jules, que participa no esquema “piscou-perdeu”.
Fitz tem uma filha, que herdou seus poderes e se chama Petra. E George também tem um herdeiro, cujo nome é Hutch. Ele não tem poderes e se vale de um bastão teleportador que o leva aonde deseja.
A primeira temporada de Legado de Júpiter se resume a contar a odisséia de Sheldon e seus amigos até a famigerada ilha, onde eles conseguirão seus superpoderes e, nos dias atuais, a trama se rasga em duas: uma delas gira na repercussão da morte de um vilão extremamente poderoso e bruto que, mesmo com a força conjunta da União da Justiça, só consegue ser parado com sua morte; e a outra, com Chloe e sua vida disruptiva que joga mais gasolina na fogueira quando se envolve com Hutch.
Claramente, a série tenta criar uma colisão de gerações e dessas faíscas, argumentos e debates sobre quem tem razão; porém, o que se mostra é que ninguém tem razão e a teimosia e o chamado mimimi reina.
Sheldon talvez seja o exemplo extremo da teimosia e falta de bom senso, quando estica a corda de suas convicções pessoais e arrasta toda a equipe nisso, sem ao menos ouvir opiniões alheias. Do outro lado, vemos Chloe, cuja vivacidade é contraposta à autopiedade, num conjunto vazio de egoísmo e, de novo, teimosia.
E quem ganha com isso? Ninguém! Porque a série torna-se arrastada, cansativa e repetitiva, deixando os espectadores com vontade de avançar as cenas.
A grande batalha da série acontece no primeiro capítulo e deveria ser o cartão de visitas do que nos aguarda; no entanto, se a levarmos em conta, pararíamos ali mesmo, pois haja falta de capacidade para se criar uma coreografia no mínimo atraente. A “Supermulher”, Lady Liberdade, por exemplo, que pode se mover em hipervelocidade, não consegue dar um pique para alcançar o vilão, mostrando o baixo preparo físico da atriz, Leslie Bibb. A pancadaria vistosa de Falcão e o Soldado Invernal, por exemplo, vira algo até constrangedor, quando o vilão Estrela Negra, pisa no peito do campeão, Utópico. Tudo é tosco. Os vôos, as manifestações de poderes, as lutas, as aterrissagens. No quesito efeitos, a produção ficou devendo.
Quanto ao elenco, o nome mais conhecido entre os protagonistas, com certeza é Bibb, famosa por, entre outros papeis, ter interpretado a repórter que azucrina a vida de Tony Stark em Homem de Ferro. Além dela, há a participação do melhor ator em todo o elenco, Kurtwood Smith, o eterno vilão de RoboCop. E dos novatos quem rouba a cena é, com toda a certeza, Matt Lanter, que entrega um George Hutchence bem-humorado e com alma. Josh Duhamel encabeça o elenco e tenta dar dignidade ao seu Sheldon/Utópico; e até consegue como o jovem James Cagney lá atrás. Porém, como o maior campeão da humanidade, ele não convence. Duhamel mira no Superman de Reino do Amanhã, mas acerta em Joseph, um clone rejuvenescido de Magneto, que não ia a lugar algum.
Aliás, há muito tempo, Duhamel procura uma franquia para si. Você o viu em Transformers, como o irmão mais velho-militar de Shia LaBeouf. Reza a lenda que ao início da produção, era Lennox, personagem de Duhamel quem seria o astro; porém, Shia acabou roubando a cena e o foco do filme virou para ele.
As caracterizações também são pouco críveis, com perucas toscas, como a de Duhamel; e uniformes com enchimento de espuma.
Ao final da temporada, Legado de Júpiter pouco anda – e, inclusive aconteceu com a anuência de seu criador, Mark Millar. Nas HQs, o prólogo se dá muito rapidamente e a partir dali a ação toma conta das páginas. Millar entendeu que seria interessante se aprofundar melhor nos anos 20 e levar a trama a conta-gotas.
Surpreendente, se levarmos em conta que ele havia inicialmente optado por adaptar sua saga para os cinemas, mas foi convencido por James Gunn – de Guardiões da Galáxia e O Esquadrão Suicida – e partir para uma série, por questão de tempo.
Mas as filmagens também não foram fáceis: primeiro porque perderam seu showrunner, Steven S. DeKnight – de Demolidor 1ª temporada e Spartacus – que saiu por divergência de idéias, sendo substituído por Sang Kyu Kim, de Walking Dead. Além disso, ainda houve a questão da pandemia que atingiu a produção em cheio – eles haviam terminado metade das filmagens ao final de 2019. Outra produção de Millar, Magic Order, não teve a mesma sorte e acabou adiada.
De qualquer maneira, entre mortos e feridos, Legado de Júpiter chegou e, mesmo recebendo críticas mornas, ganha uma espécie de voto de confiança para uma provável segunda temporada. Será que Millar e cia. acertam dessa vez?
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